terça-feira, 24 de março de 2009

EU TENHO LEPRA! por Patricia Neme


O médico abriu o envelope da eletroneuromiografia e, num misto de alívio e preocupação, disse-me: “Hanseníase neural, em estágio avançadíssimo”. Ali findavam dois anos e meio de peregrinação a consultórios das mais variadas especialidades, sem que eu obtivesse qualquer resultado (e quantas vezes outros profissionais me encaminharam a psicólogos, psiquiatras. Só ele acreditava que havia algo mais sério). Tantos exames, tantas quedas súbitas, causando uma interminável quebradeira de ossos. Dali, fui ao dermatologista e, em seguida, ao posto de saúde, onde iniciei a poliquimioterapia.

Apesar de há muito tempo não receber uma visita pastoral, ou resposta aos meus e-mails e telefonemas, com o diagnóstico na mão, procurei o pastor da minha igreja, na pretensão de que ele entendesse a razão da minha rara freqüência aos cultos, pois mal conseguia andar; tinha dores intensas nas pernas e braços, além de muita dor de cabeça. Ele me perguntou: “O que você deseja que façamos por você?” “Quero sua unção e sua bênção, tudo o mais está resolvido”, respondi.

Recebi a unção e a bênção, e nunca mais tive notícias dele. Afinal, se a arca da aliança ficou três meses na casa de Obede-Edom e lhe resolveu a vida, eu passara quase três anos indo de mal a pior... E agora, uma lepra!

Aderi à igreja virtual e Silas Malafaia tornou-se meu pastor durante o meu caminhar pelo vale do sofrimento; e só Deus sabe o quanto ele me pastoreou. Deus o abençoe!

Lepra... Mudaram o nome para hanseníase -- é mais chique. Mas é lepra, mesmo. Sempre me julguei muito culta e, na minha “elevada sabedoria”, essa doença pertencia ao Antigo Testamento. A transição daquela época a 2007 foi difícil, mas comecei a conhecer o mal silencioso que assola o país, responsável por 90% dos casos em todo o continente americano. O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de portadores, só perdendo para a Índia, que tem uma população cinco vezes maior do que a nossa. O que será que realmente fizeram com a CPMF, se até a poliquimioterapia nos é doada por uma ONG holandesa?

Causada pelo bacilo “mycobacterium leprae”, a hanseníase compromete a pele e os nervos. A transmissão ocorre pelas vias respiratórias. Os sintomas são manchas ou lesões cutâneas esbranquiçadas ou avermelhadas, com sensação de queimação, ardência, coceira ou perda de sensibilidade; também são sintomas da doença o aparecimento de placas, caroços vermelhos dolorosos e inchaços no rosto, dor nas articulações, febre, inchaço nas pernas, queda de pelos, além de dor no trajeto dos nervos que passam pelos cotovelos, punhos, atrás dos joelhos e tornozelos, causando a diminuição da força e dormência nas mãos e nos pés. Quanto mais cedo diagnosticada, maiores as chances de o paciente não ficar com seqüelas.

Porém, para o diagnóstico precoce e a cura, é necessária uma experiência que poucos dermatologistas adquirem, pois a parte cosmética de sua especialização lhes permite maiores lucros; também urgem algumas condutas de suma importância, ou jamais conseguiremos erradicar a hanseníase. Não podemos acreditar nas estatísticas, em razão do pouco conhecimento da maioria dos médicos, o que os leva a diagnósticos em direções outras, e do medo da discriminação, que impede muitos portadores de se apresentarem aos postos de saúde, onde as estatísticas são elaboradas.

Assim, é preciso: a) que o Ministério da Saúde faça campanhas elucidativas, para que o próprio paciente possa reconhecer os sintomas da doença e procurar um médico; b) que nossas igrejas realizem palestras sobre o tema; c) que as faculdades de medicina dediquem um espaço maior no currículo às doenças negligenciadas (hansen, malária, tuberculose etc.), com um ensino mais voltado à identificação dos sintomas e não apenas ao tratamento da doença, principalmente porque a hanseníase pode ser confundida com várias outras enfermidades; d) que os Conselhos Regionais de Medicina promovam constantemente cursos sobre o tema, já que a situação no país é crítica e muitos médicos acreditam que a lepra está erradicada no Brasil; e) que se acabe com o infeliz “slogan” “Hanseníase tem cura”, que banaliza a doença, colocando-a quase no mesmo patamar de um resfriado. Porque muitos casos são diagnosticados tardiamente, há muita gente com seqüelas graves (o meu caso), num processo irreversível que desmorona a pessoa física e psicologicamente. Cura parcial não é cura. Ou quem insiste em tal “slogan” obtém algum benefício ao compactuar com o descaso do governo?

Outros dois aspectos não podem deixar de ser mencionados, dada a sua importância na vida dos pacientes. O primeiro refere-se ao descaso dos peritos do INSS, que desconsideram relatórios médicos dos profissionais que nos acompanham e alteram diagnósticos segundo sua inspiração momentânea (um perito “mudou” meu laudo para osteoartrose e outro, para depressão... No caso da lepra neural, a boa aparência do paciente é interpretada como saúde total, por desconhecerem que a clofazimina deixa a pessoa com ótima aparência, bronzeada).

O segundo aspecto refere-se à ignorância de muitas igrejas (principalmente evangélicas), que rejeitam tratamentos médicos porque “Jesus cura” e ousam afirmar que a lepra é um castigo de Deus a quem muito peca (ouvi isso de um pastor. De outro, ouvi que eu deveria parar com o tratamento, pois tomar a poliquimioterapia demonstrava a minha pouca fé). Oséias 4.6 alerta que padecemos por falta de conhecimento. Até quando seguiremos com essa insanidade?

Deus cura, é verdade. Mas no tempo dele e através de diferentes formas, por exemplo usando a medicina. Ou não cura (alguém se lembra do apóstolo Paulo?), por motivos que ele conhece. E, se ele conhece, isto basta!

A lepra é um processo muito sofrido, que aumenta com o desconhecimento dos médicos sobre a doença, o que não lhes permite que nos orientem da melhor forma em relação às reações colaterais do tratamento (quase morri em função da dapsona, pois sou alérgica à sulfa). Ninguém explica ao paciente sobre a necessidade de acompanhamento por outros especialistas, pois a poliquimioterapia pode causar hepatite, anemia, catarata e problemas renais, um roteiro que percorri todo. E a dor agiganta-se, quando tememos a discriminação, o julgamento absurdo daqueles que deveriam nos acompanhar espiritualmente.

Pela misericórdia de Deus, e pela facilidade de acesso aos meios de informação, tive a felicidade de encontrar o Portal da Hanseníase (www.hanseniase.passosuemg.br), um trabalho abnegado e altamente profissional, voltado a ministrar cursos on-line a profissionais da área da saúde e a esclarecer dúvidas de portadores da doença. Mas e quem não dispõe desse recurso? E as pessoas mais simples, perdidas no labirinto da impaciência do sistema público de saúde? É por elas que estou aqui.

Quero convidar o leitor a que se informe sobre esse mal; que não nos olhe com reservas ou se assuste com nossas seqüelas físicas -- pior seria se fossem morais. Que nos ajude a buscar informações e esteja ao nosso lado nessa luta por uma verdadeira cidadania.

Eu tenho lepra, você tem diabetes, há quem tenha câncer. Somos todos merecedores de respeito, tratamento digno e fraterno. Se assim for, só nos contagiaremos de amor. Daquele que eleva e constrói. E cura! Pensemos nisso, e que Deus nos abençoe.


• Patrícia Neme é tradutora, intérprete e poetisa. É autora de “Relicário” (Ed. Corifeu).
http://www.ultimato.com.br

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