Os evangélicos no Brasil
nunca conseguiram se livrar totalmente da influência do Catolicismo Romano. Por
séculos, o Catolicismo formou a mentalidade brasileira, a sua maneira de ver o
mundo ("cosmovisão"). O crescimento do número de evangélicos no
Brasil é cada vez maior – segundo o IBGE, seremos 40 milhões esse ano de 2006 –
mas há várias evidências de que boa parte dos evangélicos não
tem conseguido se livrar da herança católica.
É um fato que conversão
verdadeira (arrependimento e fé) implica numa mudança espiritual e moral, mas
não significa necessariamente uma mudança na maneira como a pessoa vê o mundo.
Alguém pode ter sido regenerado pelo Espírito e ainda continuar, por um tempo,
a enxergar as coisas com os pressupostos antigos. É o caso dos crentes de
Corinto, por exemplo. Alguns deles haviam sido impuros, idólatras, adúlteros,
efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores.
Todavia, haviam sido lavados, santificados e justificados "em o nome do
Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (1Co 6.9-11) sem que isso
significasse que uma mudança completa de mentalidade houvesse ocorrido com
eles. Na primeira carta que lhes escreve, Paulo revela duas áreas em que eles
continuavam a agir como pagãos: na maneira grega dicotômica de ver o mundo
dividido em matéria e espírito (que dificultava a aceitação entre eles das
relações sexuais no casamento e a ressurreição física dos mortos – capítulos 7
e 15) e o culto à personalidade mantido para com os filósofos gregos (que logo os
levou à formar partidos na igreja em torno de Paulo, Pedro, Apolo e mesmo o
próprio Cristo – capítulos 1
a 4). Eles eram cristãos, mas com a alma grega pagã.
Da mesma forma, creio
que grande parte dos evangélicos no Brasil tem a alma católica. Antes de passar
às argumentações, preciso esclarecer um ponto. Todas as tendências que eu
identifico entre os evangélicos como sendo herança católica, no fundo, antes de
serem católicas, são realmente tendências da nossa natureza humana decaída,
corrompida e manchada pelo pecado, que se manifestam em todos os lugares, em
todos os sistemas e não somente no Catolicismo. Como disse o reformado R.
Hooykas, famoso historiador da ciência, “no fundo, somos todos romanos” (Philosophia
Liberta, 1957). Todavia, alguns sistemas são mais vulneráveis a essas
tendências e as absorveram mais que outros, como penso que é o caso com o
Catolicismo no Brasil. E que tendências são essas?
1) O gosto por
bispos e apóstolos – Na Igreja Católica, o sistema papal impõe a autoridade de um único
homem sobre todo o povo. A distinção entre clérigos (padres, bispos, cardeais e
o papa) e leigos (o povo comum) coloca os sacerdotes católicos em um nível
acima das pessoas normais, como se fossem revestidos de uma autoridade, um
carisma, uma espiritualidade inacessível, que provoca a admiração e o espanto
da gente comum, infundindo respeito e veneração. Há um gosto na alma brasileira
por bispos, catedrais, pompas, rituais. Só assim consigo entender a aceitação
generalizada por parte dos próprios evangélicos de bispos e apóstolos
auto-nomeados, mesmo após Lutero ter rasgado a bula papal que o excomungava e
queimá-la na fogueira. A doutrina reformada do sacerdócio universal dos crentes
e a abolição da distinção entre clérigos e leigos ainda não permearam a
cosmovisão dos evangélicos no Brasil, com poucas exceções.
2) A idéia que
pastores são mediadores entre Deus e os homens – No Catolicismo, a
Igreja é mediadora entre Deus e os homens e transmite a graça divina mediante
os sacramentos, as indulgências, as orações. Os sacerdotes católicos são vistos
como aqueles através de quem essa graça é concedida, pois são eles que, com as
suas palavras, transformam, na Missa, o pão e o vinho no corpo e no sangue de
Cristo; que aplicam a água benta no batismo para remissão de pecados; que ouvem
a confissão do povo e pronunciam o perdão de pecados. Essa mentalidade de
mediação humana passou para os evangélicos, com algumas poucas mudanças. Até
nas igrejas chamadas históricas os crentes brasileiros agem como se a oração do
pastor fosse mais poderosa do que a deles, e que os pastores funcionam como
mediadores entre eles e os favores divinos. Esse ranço do Catolicismo vem sendo
cada vez mais explorado por setores neopentecostais do evangelicalismo, a
julgar por práticas já assimiladas como “a oração dos 318 homens de Deus”, “a
prece poderosa do bispo tal”, “a oração da irmã fulana, que é profetisa”, etc.
3) O misticismo supersticioso no apego a objetos sagrados – O Catolicismo no
Brasil, por sua vez influenciado pelas religiões afro-brasileiras, semeou
misticismo e superstição durante séculos na alma brasileira: milagres de
santos, uso de relíquias, aparições de Cristo e de Maria, objetos ungidos e
santificados, água benta, entre outros. Hoje, há um crescimento espantoso entre
setores evangélicos do uso de copo d’água, rosa ungida, sal grosso, pulseiras
abençoadas, pentes santos do kit de beleza da rainha Ester, peças de roupa
de entes queridos, oração no monte, no vale; óleos de oliveiras de Jerusalém,
água do Jordão, sal do Vale do Sal, trombetas de Gideão (distribuídas em
profusão), o cajado de Moisés... é infindável e sem limites a imaginação dos
líderes e a credulidade do povo. Esse fenômeno só pode se explicado, ao
meu ver, por um gosto intrínseco pelo misticismo impresso na alma católica dos
evangélicos.
4) A separação
entre sagrado e profano – No centro do pensamento católico existe a distinção
entre natureza e graça idealizada e defendida por Tomás de Aquino, um dos mais
importantes teólogos da Igreja Católica. Na prática, isso significou a
aceitação de duas realidades co-existentes, antagônicas e freqüentemente
irreconciliáveis: o sagrado, substanciado na Santa Igreja, e o profano, que é
tudo o mais no mundo lá fora. Os brasileiros aprenderam durante séculos a não misturar
as coisas: sagrado é aquilo que a gente vai fazer na Igreja: assistir Missa e
se confessar. O profano – meu trabalho, meus estudos, as ciências – permanece
intocado pelos pressupostos cristãos, separado de forma estanque. É a mesma
atitude dos evangélicos. Falta-nos uma mentalidade que integre a fé às demais
áreas da vida, conforme a visão bíblica de que tudo é sagrado. Por exemplo, na
área da educação, temos por séculos deixado que a mentalidade humanista
secularizada, permeada de pressupostos anticristãos, eduque os nossos filhos,
do ensino fundamental até o superior, com algumas exceções. Em outros países os
evangélicos têm tido mais sucesso em manter instituições de ensino que além de
serem tão competentes como as outras, oferecem uma visão de mundo, de ciência,
de tecnologia e da história oriunda de pressupostos cristãos. Numa cultura
permeada pela idéia de que o sagrado e profano, a religião e o mundo, são dois
reinos distintos e frequentemente antagônicos, não há como uma visão integral
surgir e prevalecer a não ser por uma profunda reforma de mentalidade entre os
evangélicos.
5) Somente pecados
sexuais são realmente graves – A distinção entre pecados mortais e veniais feita pelo
romanismo católico vem permeando a ética brasileira há séculos. Segundo essa
distinção, pecados considerados mortais privam a alma da graça salvadora e
condenam ao inferno, enquanto que os veniais, como o nome já indica, são mais
leves e merecem somente castigos temporais. A nossa cultura se encarregou de
preencher as listas dos mortais e dos veniais. Dessa forma, enquanto se pode
aceitar a “mentirinha”, o jeitinho, o tirar vantagem, a maledicência, etc., o
adultério se tornou imperdoável. Lula foi reeleito cercado de acusações de
corrupção. Mas, se tivesse ocorrido uma denúncia de escândalo sexual, tenho dúvidas de que
teria sido reeleito, ou que teria sido reeleito por uma margem tão grande. Nas
igrejas evangélicas – onde se sabe pela Bíblia que todo pecado é odioso e que
quem guarda toda a lei de Deus e quebra um só mandamento é culpado de todos – é
raro que alguém seja disciplinado, corrigido, admoestado, destituído ou
despojado por pecados como mentira, preguiça, orgulho, vaidade, maledicência,
entre outros. As disciplinas eclesiásticas acontecem via de regra por pecados
de natureza sexual, como adultério, prostituição, fornicação, adição à
pornografia, homossexualismo, etc., embora até mesmo esses estão sendo cada vez
mais aceitáveis aos olhos evangélicos. Mais um resquício de catolicismo na alma
dos evangélicos?
Quando vejo o retorno de
grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais católicas de usar no
culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para si bispos e
apóstolos, imersas em práticas supersticiosas, me pergunto se, ao final das
contas, o neopentecostalismo brasileiro não é, na verdade, um filho da Igreja
Católica medieval, uma forma de neo-catolicismo tardio que surge e cresce em
nosso país onde até os evangélicos têm alma católica.
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