terça-feira, 2 de agosto de 2011

FACES, CAPAS E MILHAS por Alexandre Melatto


Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. (Mat 5:38-42)
Irmãos de jornada e de caminhada...
 
Eis uma parte do Sermão em que John Stott chamava do Sermão da Contra-Cultura, por retratar tudo o que a cultura religiosa instituía na época.
Foi batendo de frente com esta postura dominante nos religiosos da época que Jesus ensinou que deveriam deixar de observar a Lei de Talião.
Parece que a tal Lei de Talião era ruim, não é? É isto que se prega por ai...
Mas a intenção original do Legisladorao impor esta lei do "olho por olho"era boadelimitava a retribuição e o castigo ao crime.
Não era considerada uma regra má, uma lei ruim, ao contrário, era uma solução misericordiosa, graciosa, pois antes não havia essa limitaçãonão havia proporcionalidade entre o delito (a vítima perder um olho) e a pena (o algoz também perder um olho). E a pena mais comum, independente do delito, era a morte.
Os historiadores contam que por qualquer motivo
, a sentença de morte era impetrada.
A vítima sentia-se superior e diferente de seu algoz.
O “grande lance”, o detalhe essencial, o maior simbolismo, é que ninguém achava que poderia ir além, ter uma lei religiosa melhor do a do Talião, todos achavam que tal lei já era – por si só – a manifestação justa e perfeita da ação do Divino. Mas chega Jesus e surpreende a todos, indicando uma alteração na lei que já era misericordiosa e tinha até opositores que achavam que era uma lei branda, que quem cometeu qualquer delito deveria era morrer: “Perder um olho para quem arrancou o olho de outrem; é pouco!”
 
Jesus vai além de retribuir o mal com o bem, o “tempero” era um pouco mais forte:
 
1)     ... oferece-lhe também a outra;” : o primeiro tapa era dado com as costas das mãos (meio-tapa e sem força, da esquerda para a direita), o tapa de desprezo, o tapa de redução à insignificância, ao limbo do não-ser, da não importância e da não existência, dar a outra face imediatamente é: Bata-me com mais força,com o seu melhor,com um tapa de verdade, bata-me de verdade!

2)     ... larga-lhe também a capa;”: a única parte do vestuário que de fato protegia do frio noturno da região era a capa (normalmente de couro pesado e com bolsos estratégicos com pães e peixes salgados), pela característica do solo da região ser arenoso, a areia não retêm o calor escaldante do dia, portanto não o dissipa à noite. Flávio Josefo registrou que os salteadores dos caminhos que levavam à Jerusalém deixavam suas vítimas somente com a capa, para que não morressem de frio à noite. Dar a capa é entregar tudo e entregar-se totalmente, é a capa do cego Bartimeu que é lançada para trás, é ficar nu e sem proteção, é mostrar-se por inteiro.
 
3)     ...vai com ele duas.”: um soldado romano poderia (com respaldo da lei) obrigar a qualquer cidadão do Império a carregardurante uma milha, suas bagagens; tanto que quando viam soldados ao longe as pessoas fugiam. Pedia-se que não se conversasse ou se intrometesse nos assuntos dos soldados durante esta milha. Andar uma milha a mais era também poder se expor, era ser identificado como que incluía – não os seus iguais, nisto não há mérito – há nepotismo, mas os seus diferente,  não por ser alguém forçado por lei e decreto a se relacionar, mas alguém que poderia ser visto como pessoa (per sonare ð persona ð pessoa = o funil que fazia ressoar a voz por trás das máscaras no teatro grego) , alguém que tinha voz, que tinha vontade própria.

Muito mais do que uma lei que já era justa e que aplacava o desejo da vingança desproporcional, muito mais do que uma lei que já era amplamente debatida pelos puristas e tradicionalistas que desejavam que por qualquer crime deveria se matar; Jesus chega com a Lei que não era justa, à medida que era Graciosa, e não há mais justiça na Graça, há houve, uma vez só, há dois mil anos, na cruz...
Que aqueles que são caminhantes e peregrinos de qualquer origem e para qualquer destino, possam nos ver e tratar como pessoas.
Que possamos ver as pessoas como seres integrais e respeitá-los, ainda que sejamos caminhantes para o mesmo destino, nunca tivemos, temos e teremos a mesma origem existencial de estímulos e percepções.
Que tenhamos a longanimidade uns para com os outros. Longanimidade que em grego, “makrothumia”, que no vocabulário da época também significava temperança (tempero certo das emoções) e conseguir esperar ou ter paciência.
Estas duas palavras: “makros” e “thumos” possuem significados distintos.
Makros” remete a algo longínquo, distante, longo.
A raiz da palavra é uma outra que é “megas”, que pode significar algo grande, algo que é uma maravilha e que está em um padrão elevado.
Thumos” pode ser traduzida por indignação, furor, ira, cólera, vontade de retribuir na mesma proporcionalidade e até fora da proporcionalidade.
Thuo”é a raiz desta palavra, em português seria sopro, fumaça e respirar intensamente (respire fundo).
Mas como está ligado a sopro, há uma implicação que traz o significado de sacrificar, imolar e matar.
Ser longânimo é uma atitude em que há um longo espaço até que você sinta a vontade de retribuir à altura; ou sob a Lei de Talião.
Mas “makrothumia” também é um grande sacrifício.
Desinflar o peito e parar de afirmar "Eu sou assim mesmo!" e voltar ao chão das gentes, das pessoas, o mesmo chão que Jesus palmilhou para tocar naqueles que Ele quis que fossem feitos iguais.
É ver neste chão e nesta gente “pessoas” que fazem ressoar o seu próprio sotaque existencial de sua origem, sotaque com tessitura,timbre e tom próprios, que os fazem tão diferentes de nós.
É ver em nós “pessoas”, que são tão iguais às outras, porque todos estamos e somos do grupo dos diferentes,tão diferentes que somente o Cristo morrendo na Cruz para nos fazermos um, um Nele, um no Pai e um em nós mesmos.
A cruz não prova e nunca provou que temos valor e somos preciosos, a cruz prova o quanto todos nós éramos e somos depravados. Por causa do que existe em nós ela (a cruz) existiu para Jesus.
A encarnação de Jesus, sua morte e ressurreição provam o quanto somos amados por Deus, não pela justiça de se amar o que é valioso, mas pela Graça de não merecermos nada a não ser a Cruz, sinal - ícone - signo - símbolo - destino justo de nossa culpabilidade.
A cruz prova o amor de Deus para conosco, a sua Graça e Misericórdia...
A cruz foi além da lei do olho por olho e dente por dente, foi a lei da morte, não em nós, mas em Cristo!
Somos diferentes e melhores em que mesmo?
Eis a minha face, a minha capa e a minha milha...
Alexandre Melatto – Dinho
Tão diferente e tão igual a cada um de vocês.

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